Era um dia cinza, nublado se preferirem, sem sol e levemente frio.
Caminhava pelas ruas, com minha jaqueta de couro, enquanto uma leve garoa cismava em cair sobre mim... Ia para lugar nenhum. Meu destino era desconhecido até para mim.
Caminhar não é a palavra, mancando seria o correto. Afinal, não é fácil conviver com a dor. Desde sempre, mancar é algo natural para mim. Provavelmente eu não saberia andar de outra maneira senão mancar.
Estava passando por mais uma época dos meus problemas com a escrita. Por que isso era um problema? Ainda é. Mas isso por que eu sou o que chamariam de escritor, desses que devem ter a cara enfiada em um caderno fazendo suas anotações e observações. Mas eu não conseguia escrever nem mais uma maldita linha... Até o momento de agora, onde uma coisa conseguiu tirar minha mente das minhas preocupações em que estava focada, causando-me o bloqueio.
Meus pés levaram-me até a pista de skate. Estava deserta. Certamente o frio e a chuva afetavam aos skatistas, que costumam usar bermudas e camisetas, de maneira negativa e os impedia de realizarem seus movimentos sob suas “pranchas com rodas”.
Apesar disso, e da chuva ter engrossado, decidi ignorar o meu leve cansaço e a dor em minha perna. Segui meu caminho.
Ao erguer a gola da jaqueta, para proteger a nuca cuja qual o vento castigava severamente, escutei risos conhecidos.
Escondidos embaixo de um pequeno grupo de arvores, um cara e uma garota.
O cara, de óculos, a barba levemente por fazer. Usava um casaco de algodão e carregava sua pasta que usava como mochila. A garota, com o cabelo molhado pela chuva e um casaco negro. Ambos rindo muito sobre qualquer coisa que tenham dito ou feito.
– Hey! – Os chamei, havia os reconhecido, eram amigos. – O que fazem por aqui?
– Só o de sempre, rindo e brincando. – Ele me respondeu.
– Ainda usa essa “bolsa de homem”, Gabriel? – Perguntei-o e indicando sua pasta
– Ei! Não fale mal da minha bolsa de homem! – Ele ria, é sempre assim. Implico com a bolsa dele. É algo estranhamente divertido.
– Tudo bem... Está a fim de nos pagar um refrigerante? – Perguntei a ele, pois sempre costuma fazer isso quando nos encontramos.
– Ok, esperam aqui? – Disse ele ao pegar sua bolsa e se encaminhar para o pequeno mercado do outro lado da rua.
– Ei! Por que está levando a bolsa? – A garota o perguntara.
– Por que minha carteira está aqui. – Ele respondeu já em meio a rua
– E por que não pega só a carteira e deixa a bolsa?
– Por que já estou no meio da rua...
– Doido... – Conclui o recente fato e meu olhar caíra sob a garota – Então, Srta. Isabela. Como está?
– Bem, eu acho.
Aproximei meu rosto de sua face fazendo uma expressão considerada “má” pela maioria das pessoas, por alguns era até mesmo assustadora, com intenção de ver o que ela faria. Ao encostar nossas testas, ela me disse:
– Não tenho medo de você.
– Sei disso. Não quero que tenha medo de mim. – Ainda com nossas testas juntas, reparei em sua pupila. Maior do que o normal. Dilatada. Sorri e afastei-me. – Sua pupila está gigante, sabia?
– Hunf! – Ela virara o rosto emburrada. Eu simplesmente continuei a sorrir.
Sentei-me na grama, de olhos fechados, massageando minha perna, afinal de contas, dor não é algo agradável para ninguém.
– Como está a perna? – Ouvi a voz de Gabriel perguntar.
Ao abrir meus olhos, deparei-me com ele em minha frente segurando uma garrafa de Coca-Cola. Sorri de lado, movimento involuntário e natural de quando vejo uma garrafa daquelas.
– Na medida do possível, na mesma... – respondi ainda com os olhos voltados para a garrafa – Sabe que não a única mudança seria piorar. E isso eu espero que não aconteça.
– Todos esperam. – diz ele acabando com a tortura e finalmente abrindo a garrafa.
O som que fazia e o cheiro que exalava... Sim, sempre fui estranho. Principalmente quando o assunto é Coca-Cola. Consigo sentir o cheiro dela a uma distancia certa. Não sei como nem por que. Só sinto.
Ele percebe o meu olhar sob a garrafa e a passa para mim apos seu gole rápido. Por ele ter pagado, ele quem deve tomar o primeiro gole. Um ato justo que aprovo.
– Tem quanto tempo desde a ultima vez? Duas semanas? – Pergunto antes de beber.
– Acho que mais... – Responde-me e logo em seguida me ajuda a levantar para que andássemos um pouco.
Ofereço a garrafa a Isabela, ela toma do refrigerante. Talvez por educação, pois depois disso não a vi beber mais.
Enquanto andávamos, conversávamos sobre as coisas. Tudo que acontecia conosco, contávamos o que nos havia acontecido desde que nos encontramos pela ultima vez.
Enquanto caminhávamos pela linha do trem, que há muitos anos não mais existia, a chuva voltara. Fazendo-nos procurar abrigo em algum lugar.
– Em baixo de uma arvore? Ótimo lugar pra se ficar durante uma chuva... – Queixei-me a eles.
– Por enquanto vai ter que servir. – Ele disse
– Daqui a pouco a chuva diminui e vamos procurar um lugar melhor. – Ela disse.
Talvez também estivesse preocupada com o fato de estarmos em um lugar como aquele, mas eu ainda duvido.
A chuva parecia que logo pararia, mas não tão logo.
Enquanto nos encarávamos, somente o som da chuva caindo impedia o silencio de se instaurar. Carros passavam ao nosso lado. Por questão de sorte não espirravam a agua da estrada em nós.
– O que fazem ai na chuva? – perguntou uma mulher no carro que acabara de parar ao nosso lado.
Era a mãe do Gabriel. Estava no banco do carona. Logo quem dirigia era seu pai.
– Nada não mãe. – ele respondeu
– Não querem uma carona pra algum lugar? – ofereceu ela
– Não precisa. Daqui a pouco a chuva para e vamos pra algum lugar mais protegido.
– Tudo bem, vocês quem sabem. – disse ela voltando-se para frente enquanto partiam nos deixando ali
– Bom ver você de novo senhora – eu disse, acenando, pouco antes de a janela se fechar.
Ela acenou de volta e partiram.
Voltamos a nos encarar. Eu continuava com a garrafa em minhas mãos.
– Sabe me sinto como um bêbado com a garrafa assim na mão. – Um comentário engraçado. Afinal a garrafa ainda estava envolvida na sacola em que viera, e eu a segurava pela boca, quase literalmente.
– Realmente parece um. – Ria Isabela
– Não sei se repararam, mas a chuva parou. – Constatou Gabriel a nós.
Eu não havia reparado. Estava ocupado. Não importa com o que.
– Vamos para onde agora? – Perguntei ainda distraído levando a garrafa à boca.
– Que tal irmos no Mustang? – Sugeriu Gabriel.
Mustang, um ótimo amigo. Sempre cheio de histórias de vida e opiniões fortes.
– Ele está no trabalho agora. – Respondi
– E quando ele volta? – Perguntou Gabriel, desanimado com o fim da sua, possivelmente única, sugestão.
– Quase meia-noite.
– Ah! Mas tem o bar do outro lado da rua da casa dele! – Disse ele animando-se novamente. Isso é algo que admiro nele, ele consegue se animar muito rápido.
– Acha que podemos ir pra lá? – Isabela perguntou. Ela parecia receosa. Talvez o fato de sermos todos menores perante a lei.
– Ah, eu estou barbudo, o Luigi também e você está conosco. – respondeu Gabriel – Então acho que não tem problema. E afinal, nem vamos beber. Só nos proteger da chuva. No máximo mais uma Coca-Cola.
– Mais uma Coca? Seria ótimo. – disse já jogando a garrafa vazia na lixeira – E dessa vez vocês tem que tomar mais do que um ou dois goles. Sinto-me mal por tomar a coca praticamente toda sozinho, sendo que nem fui eu quem pagou por ela!
Riamos enquanto caminhávamos rumo ao nosso novo destino.
Faltavam apenas duas quadras para chegarmos quando vi.
– Só pode ser sacanagem... – Murmurei.
– O que? – Ouvi me perguntarem, eu apenas encarava o lugar.
– Tá fechado... – Apontei para o bar.
– Droga! – Ouvi Gabriel reclamar.
–Ainda podemos sentar na calçada e aproveitarmos o toldo para nos proteger da chuva. – Disse Isabela
– É... – Desanimado, sentei-me encostando as costas na parede do bar.
A chuva tornara a engrossar. Eles haviam começado a falar sobre assuntos que só a eles era conhecido. Eu já não mais os ouvia, estava concentrado... Olhando a chuva cair, o céu passando de uma cor cinza chuvosa para um tom negro noturno.
Quando a chuva decidira parar, definitivamente dessa vez, decidimos voltar à pista.
Eles precisavam pegar suas caronas para que fossem levados para suas casas. Eu, por outro lado, não precisava ir a lugar algum. Então seguimos para o final da pista, onde os carros podiam passar tranquilamente.
Lá, eles ligaram para seus pais. Pedindo para irem lhes buscar.
– Ah! Não vou ficar aqui sozinho nessa! – Disse tirando meu próprio celular do bolso e fazendo de conta de que estava falando com alguém.
– Não precisa fazer isso, eu já terminei. – Isabela me disse.
Eu apenas sorri e a abracei.
Ela retribuíra meu abraço sorrindo.
Aproximei meu rosto do dela. Sentia sua respiração, nossos narizes roçaram um no outro e, de maneira inexplicável, mesmo com o frio seus lábios permaneciam quentes.
O toque dos lábios dela nos meus era algo inexplicavelmente bom. Melhor do que bom. Por falta de palavra melhor, era incomparável.
– É engraçado. – Eu disse. Um sorriso de lado insistia em permanecer em meu rosto.
– Por quê? – Ela me perguntara, sua voz estava calma, quase sussurrando.
– Não sei, só é. – Sorrindo, tornei a beija-la.
Naquele momento, eu realmente não sabia. Mas agora tenho uma ideia geral de por que.
Gabriel, que até então ainda falava no celular, nos encarava. Com um sorriso idiota no rosto. Enquanto a beijava novamente, mostrei-lhe o dedo do meio.
– Que bonitinho. – Disse ele fazendo voz de criança.
– Vê se morre cara. – Respondi a ele.
– Tudo bem. – Disse ele, virando-se para a palmeira que havia perto. – Quer dançar?
Eu simplesmente não acreditava, ele realmente pedira a palmeira para dançar... E começou a dançar com ela. Foi uma das cenas mais estranhas que eu poderia ter visto.
– Eu podia dormir hoje sem ver isso...
– Dois – Afirmou Isabela.
– Você só pode ter muitos problemas Gabs. – Disse a ele, arqueando as sobrancelhas.
– Tenho dois. Uma com 1,73m e outro com... 1,76m?
– 1,77m. E não se esqueça disso. – Respondi, abraçado a Isabela.
Eu comecei a cutucar o umbigo dela.
– Para! – Ela pedira a mim.
– O que? – Gabriel perguntou a ela
– Ele está cutucando meu umbigo!
– O que posso fazer se gosto do seu umbigo? Ele é fundinho... Sabe é bom pra cutucar...
– Não é! E para com isso!
– Tudo bem... – Respondi e em seguida lhe mordi a bochecha.
Começamos a nos morder, enquanto Gabriel tornara a dançar com a palmeira. Até que em certo momento ele perguntara:
– Vão ficar se comendo ai por mais quanto tempo?
– Morra... – Ela respondera.
– Só uma pergunta. Vocês tiveram o dia inteiro pra isso, por que só agora que o dia está no fim?
– Por que... Amamos a noite. Principalmente quando é uma noite chuvosa.
– É. – Concordou ela comigo.
Apos isso paramos de nos morder, com a condição de que ele pararia de dançar com a palmeira.
– Ah sim, Gabriel, posso pegar carona com você? – Ela pedira, embora na hora tenha parecido um aviso.
– Sem problemas.
Estávamos conversando novamente, não me recordo mais sobre o que. E se eu não recordo, não devem ter sido lá tão interessantes quanto pareceram na hora.
Não muito tempo depois, ouvimos o som de uma buzina. Eram os pais de Gabriel.
– Vou avisar que você vai comigo. – Disse ele indo em direção ao carro.
Enquanto esperávamos que ele voltasse, voltamos a nos beijar. Mas bem diz o ditado que sempre vai haver uma mosca na sopa, ele voltou rápido. Rápido demais para o eu gosto.
– Se você vai, tem que vir logo. Despeçam-se rápido, não uma despedida de meia hora. – Disse ele, não sabia dizer se ele sorria por deboche ou por ser realmente algo engraçado.
– Morra. – Respondi.
Um leve, e rápido, beijo a mais.
– Tchau... – Uma despedida singela, mas ainda assim... Não sai mais de minha mente.
Eles correram para o carro, eu acenei e logo partiram...
Enquanto caminhava para casa, havia um sorriso idiota, como eu mesmo passei a pensar. Um sorriso que ninguém seria capaz de tirar do meu rosto.
Pela primeira vez em muito tempo, não me sentia solitário ao andar sozinho. Não me sentia tão triste quanto antes. Sentia que seria capaz de voltar a escrever... E realmente eu o fiz, embora eu já esteja escrevendo essa crônica há quase um mês...
O que importa é que, finalmente, terminei-a.
E que fico repetindo aquele dia diversas vezes em minha mente.
Um dia em que eu passei a amar mais ainda à noite. A amar mais ainda as noites onde a chuva passara.
O dia na qual, eu senti. E isso, ninguém pode tirar de mim.